Chico Buarque é um dos mais precisos e inspirados artistas latino-americanos. Porém, com Essa gente, o seu romance mais recente, esse olhar parece atingir uma amplitude inédita: Manuel Duarte, um escritor sexagenário, deambula pelo Rio de Janeiro e guia-nos por uma divina comédia de exclusão e privilégio. Um músico negro crivado de balas pela polícia, um decreto que facilita o uso das armas de fogo, um jato privado cheio de cocaína, as luxuosas festas da nova casta política, uma manifestação reprimida com ferocidade, um sem-abrigo brutalmente espancado, um casal gay violentado pelo poder evangelista, o elegante bairro do Leblon e a dura realidade da favela do Vidigal…
Fascinado com este romance e devoto da obra de Buarque, o grande compositor argentino Fito Páez entrevistou-o para se embrenhar ainda mais neste fresco de vozes e personagens que, nas suas feridas e tragédias pessoais, reconstroem a memória fragmentada de um Brasil assolado pela injustiça e pelos processos políticos dos últimos anos.
Por Fito Páez
Essa gente de Chico Buarque é a porta de entrada para o século XXI. Ficam para trás os escritores vaidosos que estão apaixonados pelo som da sua voz, as vozes moralistas da esquerda em tom de manual de autoajuda, a correção política, as palavras e as cenas que não se podem contar no mainstream. É um romance que funciona como um cântaro de água fresca. Pura vida a brotar da imaginação de um artista que não conhece limites. Aposto uma bebida com quem quiser que cada leitor se sentirá identificado e interpelado por alguma das personagens desta obra coral que finalmente, e como os grandes livros, consegue o impossível: contar tudo.
Acho que Essa gente é o tipo de livro que deixa o leitor enfeitiçado sem conseguir largá-lo até chegar ao fim. Portanto, como primeira pergunta, gostaria de saber quais são as armas para manter a atenção do leitor.
Muitas vezes leio artigos nos jornais sobre workshops de criação literária. Acho que é possível ensinar certas técnicas de escrita, sobretudo se falarmos de guiões cinematográficos ou para televisão, onde, geralmente, se trabalha em equipa. Mas o trabalho do romancista costuma ser solitário: o escritor e o leitor são a mesma pessoa. Escrevo pelo prazer de ler, para manter a atenção desse leitor que sou eu próprio.
Na realização desta obra existe uma vitalidade transbordante e definitivamente incorreta quanto aos cânones do que se supõe que deve ser um «escritor latino-americano». No meu mapa situo-te por momentos mais perto de Copi ou de Fogwill na utilização descarada do absurdo, no tipo de ficção, nos sonhos, disrupções de edição, etc., e, sem dúvida, afastado da tradição épica, utópica e um pouco solene do bureau do boom latino-americano do século passado. Tens alguma ideia a esse respeito que queiras comentar connosco ou parece-te um conceito ultrapassado?
A minha formação literária é bastante heterogénea. Infelizmente não conheço a obra de Copi nem a de Fogwill, mas li e valorizo muitos autores latino-americanos, até os do boom do século passado. Há mais de sessenta anos que tenho o hábito da leitura, o que não me converteu num homem especialmente culto, talvez porque costumo esquecer o que leio. No outro dia, por exemplo, pus-me a procurar um excerto de um conto do Cortázar, do qual tinha uma vaga lembrança. Não encontrei o que procurava, mas a minha pesquisa infrutuosa levou-me a reler o livro inteiro como se fosse a primeira vez. Isso chama-se serendipidade, não é?
Há muito tempo que não me ria tanto ao ler um livro. Ou melhor, deparei-me com um texto inusual na minha condição de leitor desorganizado dos teus romances. Senti um grande prazer ao descobrir que o escritor de Construção, Eu te amo e Retrato em Branco e Preto tinha não só as habilidades para descrever a melancolia e o sofrimento do amor como protagonista e o drama social como testemunha em Construção, sem contar com o preciso relato da sua árvore genealógica em Paratodos e a vida canalha do jovem que foi em A foto da capa, mas também a relaxada capacidade para elaborar os avatares de comédia de Duarte, que me levaram a um Woody Allen carioca que nos cativa pelas suas inevitáveis qualidades de anti-herói moderno. Gostaria que te espraiasses por esta «dicotomia», que me parece muito estimulante e pouco comum noutros artistas.
Nas minhas canções, a música é sempre anterior à letra. Quero com isto dizer que essas palavras não me passariam pela cabeça se antes não existisse essa música. O meu primeiro romance, publicado há já três décadas, nasceu depois de uma crise musical de mais de um ano. Naquele momento o Gilberto Gil disse que queria musicalizar algumas passagens do romance. No início duvidei… e ainda estou à espera disso. Para o bem ou para o mal, os meus textos em prosa não se confundem com os versos das minhas canções. Fico contente por saber que gostas de ambas as vertentes, porque para muitas pessoas estas excluem-se mutuamente. É uma coisa ou a outra.