«Ainda não perdi aquele prazer infantil de resolver mistérios»: entrevista a Filipa Amorim

Acaba de chegar às estantes portuguesas com A Corrente, uma história carregada de dor, amizade, amor e perda, que faz dela a primeira mulher portuguesa a escrever policiais. Descubra quem é Filipa Amorim.

 

1. Lembras-te do primeiro livro que leste que sentiste como uma viagem de não retorno para o mundo da literatura?

Lembro muito bem. Tal como grande parte da minha geração, apaixonei-me pela leitura graças ao Harry Potter. Li o primeiro livro da saga, A Pedra Filosofal, quando tinha precisamente a idade que os personagens têm na história e acho que isso contribuiu muito para me identificar com eles e estabelecer o vínculo e carinho que continuo a ter-lhes ao fim de tanto tempo. O Harry Potter marcou a minha infância e dos meus amigos. Com ele, aprendemos o valor da amizade inabalável e de lutarmos para defender aqueles que amamos, lições que me marcaram tanto que agora se refletem n’A Corrente.

 

2. Desde aí tornaste-te uma leitora ávida. Quais são as tuas influências literárias?

Desde cedo que devoro policiais e thrillers de autores do Norte da Europa, britânicos e norte-americanos, mas, cada vez mais, tenho vindo a descobrir a maravilha que são os autores portugueses, deste e de outros géneros literários. Penso que, enquanto crescia, não havia grande incentivo para que se lessem autores portugueses, tirando os obrigatórios no Plano Nacional de Leitura. Mas como tudo o que é imposto não cai muito bem, não tinha, fora da escola, o hábito de ler de autores nacionais. Isso tem vindo a mudar e ainda bem, porque temos muitas e excelentes vozes que vale a pena descobrir.

 

3. E como surgiu a escrita na tua vida? Qual foi o primeiro texto que escreveste?

O primeiro texto que escrevi, na verdade, foi uma edição (risos) do final de um dos livros da série Uma Aventura, de Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada, que são as grandes responsáveis por aqui estar hoje. Se não fossem elas e a magnífica série que escreveram, e que tanto alimentou os meus sonhos e imaginação de criança, não teria descoberto esta paixão nem querido tornar-me também escritora. Lembro-me de não ter gostado muito do fim de um dos livros d’Uma Aventura, de querer que aquela história específica ainda tivesse mais uma ou duas reviravoltas antes de acabar, por isso reescrevi o fim… e depois de o “bicho” nos entrar no corpo, nunca mais sai.

 

4. Quem é a Filipa escritora? Como acontece o planeamento da história?

A Filipa-escritora é a versão Bold e Caps Lock da Filipa-pessoa. Através das personagens e dos enredos que crio, tenho a audácia de dizer e pensar e fazer o que não tenho na vida real. Graças à escrita, vivo muito para lá da minha dimensão terrena e mortal e falível. Quanto ao planeamento das histórias, consigo delinear, no início, os traços gerais dos personagens e enredo e escolher o tempo e local da história, mas, a partir do instante em que esta começa a ganhar fôlego, vou perdendo o leme para os personagens. Há uma passagem em Enquanto o Fim não Vem, de Mafalda Santos, em que os personagens encostam o escritor à parede e o obrigam a escrevê-los de determinada forma e a levá-los para o caminho que eles querem seguir. Achei tanta piada a esse momento, porque comigo é um bocadinho assim: eles encostam-me à parede, seja nos momentos mais ou menos oportunos, a exigirem-me que os deixe conduzir, e tenho de deixar, para eles não perderem autenticidade.

 

5. Lês – e escreves – sobretudo thrillers. O que te atrai neste género?

Nos thrillers e nos policiais há um mistério na base da história, e ainda não perdi aquele prazer infantil de resolver mistérios. Era o que fazíamos em miúdos, não é?, brincar à apanhada e às escondidas. Acabamos por continuar a fazer isso na ficção, através deste género de histórias. Gosto que haja várias pistas, quebra-cabeças que nos mantêm às voltas e a equacionar tudo o que os personagens dizem e fazem. E, claro, gosto dos personagens que costumam povoar estes mundos negros dos thrillers. Sempre tive uma queda maior pelos maus da fita. Gosto de descortinar de onde vem o impulso para fazerem aquilo que fazem, que trauma passado os transformou naquilo em que acabam por se tornar. As personagens boazinhas são mais «fáceis», diria eu, é fácil gostar-se de quem não comete erros nem faz mal a ninguém, mas construir um bom vilão ou antagonista dá mais trabalho e, por isso, mais prazer. Ainda assim, nas minhas histórias o foco até está mais em quem é impactado pelas ações dos antagonistas. As famílias e os amigos das pessoas a quem acontece o que dá origem à história. «Quem fica para trás» e vê a vida virada do avesso pelo infortúnio ou crime que vamos investigar. Quero descobrir como é que dão a volta por cima, como é que seguem em frente… ou não.

 

6. Decidiste ambientar A Corrente em Santa Cruz, uma pequena cidade balnear de Torres Vedras. Porquê esta localização?

Porque Santa Cruz é uma terra linda, agradável e pacata, onde é preciso ter-se sorte com a meteorologia, mas onde, de resto, não parece que vá acontecer nada de mal… e gosto de brincar com esse «as aparências iludem». Gosto de ter um cenário bonito como pano de fundo para torturar os meus personagens à vontade.