Javier Marías: «Quase toda a gente gosta de pensar que seria incapaz de matar a sangue-frio»

Tomás Nevinson, o romance do escritor madrileno editado no final de 2021, discorre num universo de espiões, segredos e dilemas morais no meio da violência terrorista. A credulidade tornou-se uma verdadeira praga hoje, diz ele, e as mentiras reinam “nestes tempos tão entontecidos”.

 

Por Juan Gabriel Vásquez

 

Javier Marías publicou o seu primeiro romance, Los dominios del lobo, na primavera de 1971. Meio século depois chegou Tomás Nevinson – editado pela Alfaguara em dezembro de 2021 –, que acompanha Berta Isla sem ser a sua continuação, mas formando o mesmo universo fascinante: um universo de espiões, de segredos, de terríveis decisões morais que refletem árduos conflitos políticos. No início desta conversa transatlântica ­– Marías respondia por escrito em Madrid às perguntas que lhe fazia desde Bogotá ­–, quis indagar como tinha mudado o lugar da ficção no seu mundo nestes anos. «Hoje há pouca imaginação e pouca fabulação e, consequentemente, são desprestigiadas por conveniência», disse-me. «No que me diz respeito, o que começou como divertimento na minha extrema juventude, continua sendo. Se eu não me divertisse (às vezes) escrevendo, deixaria de o fazer. Depois de tanto tempo a publicar livros, por outro lado, Marías, aos 69 anos, decidiu dizer “basta” a um aspeto específico da profissão, ou assim me explicou. «O pior destes 50 anos é que passei centenas de entrevistas a falar sobre o que fiz ou sobre mim mesmo, assuntos que me aborrecem infinitamente», disse-me. «Esta pode ser a última entrevista que faço, ou uma das últimas.»

 

Sei que escreveste cerca de 400 páginas de Tomás Nevinson neste novo mundo que a pandemia nos trouxe. Ajudou-te o romance a entender os dias em que tudo, desde os nossos hábitos de trabalho até a nossa relação com a solidão, se transformou?
Sim, sem dúvida. Se ler um romance pode ajudar a abstrair-se, quanto mais escrevê-lo, ainda que seja uma tarefa infinitamente mais lenta e árdua. Durante o confinamento rigoroso, e mais tarde, Tomás Nevinson era, durante algumas horas por dia, um refúgio. Intui que, por assim dizer, ao escrever um romance, um segundo cérebro é ativado em mim. O primeiro é aquele que está comigo o tempo todo, aquele que escreve artigos, me aborrece e às vezes me atormenta, e fala e assina livros com o meu nome. O segundo só coloca o meu nome na capa. Uma vez que o romance começa e a cortina sobe (já não sei se há cortinas), fala um narrador que é tão personagem quanto os outros, não Javier Marías. Agora sinto falta daquele segundo, que estranhamente supera quase todos os contratempos, pessoais e da época. O problema é que, uma vez desativado, acho quase impossível reativá-lo. É claro que, para um romance ser capaz de abstrair o leitor, deve interessá-lo muito. Quem o escreve está quase sempre interessado no que está a fazer. Se não, é melhor abandoná-lo.

O romance tem lugar em 1997 e 1998, num cenário marcado pela violência terrorista da ETA e do IRA. Esse é o eixo do qual Nevinson pende a sua reflexão: temos o direito de matar quem pode matar depois? Como muitas vezes acontece nos teus romances, o narrador constrói o sentido da sua história acudindo a outras histórias. Uma delas é a de Friedrich Reck-Malleczewen, que em 1936 relembra o seu encontro com um Hitler solitário numa taberna qualquer. Se ele tivesse «a menor noção» do que Hitler faria, ter-lhe-ia dado um tiro ali mesmo.
Há também uma cena de um filme antigo de Fritz Lang, fictício, claro. O caso Reck-Malleczewen é impressionante, porque ele não era nem esquerdista nem judeu. Era conservador, prussiano, católico e, no entanto, escreveu o que citas. Que grau de desespero e ódio o levou a essa clarividência, que teria matado Hitler sem pestanejar (que ainda não tinha feito grande coisa) «se tivesse um vislumbre» das suas maiores atrocidades? É uma questão interessante. Quase toda a gente gosta de pensar bem de si mesmo, e que seria incapaz de matar a sangue-frio, sob quaisquer circunstâncias. Mas muitas dessas mesmas pessoas não se perturbam quando, por exemplo, a polícia mata um terrorista que acabou de matar transeuntes pacíficos ou ainda os está a matar. Em vez disso, sentem alívio. Existe uma grande hipocrisia. Não queremos ser mortos, mas também não queremos assumir pessoalmente a responsabilidade de impedi-lo. Tupra e Nevinson dedicam-se àquilo a que se dedicam e é normal que digam e pensem o que – só por plausibilidade – têm de dizer e pensar. Consideram que a sua tarefa é “evitar desgraças” e que são incompreendidos. Falam de si mesmos como os “anjos desagradáveis” que vigiam o sono dos outros, mas devem permanecer ocultos e, é claro, sem nenhum reconhecimento. Não é o meu ponto de vista (é muito difícil pronunciar-se sobre este assunto), mas é o seu. Pertencem aos Serviços Secretos, nos quais o sigilo é essencial, assim como a traição e o engano. Algo que, aliás, em muito menor grau, quase todos nós praticamos.

«Acredito que a vida se compõe em grande parte daquilo que se nos oculta e daquilo que ocultamos.»

Durante a leitura, a minha memória voltava frequentemente a O teu rosto amanhã. Assim como Jacobo Deza nesse romance, Nevinson tem um talento especial que o torna interessante para os Serviços Secretos e que acaba por confrontá-lo com situações difíceis; como O teu rosto amanhã, Tomás Nevinson fala da violência que exercemos, da justiça e da injustiça, do castigo e da vingança. Os dois romances fazem parte da mesma exploração?
Não apenas esses dois romances. Acho que a maioria, pelo menos desde o esquecido El Siglo, de 1983. Mas em Tomás Nevinson, assim como em Berta Isla e em O teu rosto amanhã, está presente a personagem Bertram Tupra (que nasceu neste último), alguém que coloca os outros diante de dilemas insolúveis, que os obriga a aprofundar nas coisas e nas pessoas e a tomar posições e decisões arriscadas, relacionadas não apenas com as questões que mencionas, mas também com a vida e a morte, com quem deve preservar a primeira e quem merece a segunda. É um homem simpático e drástico e muito cético, como convém à sua profissão, não só como espião, mas como recrutador de talentos. Mas, como ele diz no novo romance, «o ódio é desconhecido para nós». Ou seja, é alguém que é racional e que não é guiado por paixões ou emoções. Apenas para o que for conveniente para a sua tarefa, que em princípio é justa, ou assim a sente ele.

Deixa-me continuar com as semelhanças. Como O teu rosto amanhã, Tomás Nevinson acode ao mundo da literatura popular  – o romance de espionagem, do muito simples Ian Fleming ao mais complexo John le Carré e apresenta-nos um grau muito alto de exigência formal. O que há nesse universo que desperta o teu interesse?
Acredito que a vida se compõe em grande parte, e embora muitos não se apercebam, daquilo que se nos oculta e daquilo que ocultamos, que é sempre bastante, mesmo nas almas simples, para usar a expressão de Flaubert. Da dificuldade – se não impossibilidade – de decifrarmos os outros, tanto os políticos de quem dependemos em excesso, como das pessoas mais próximas. Como é dito no romance, «todos nós temos as nossas tristezas secretas». Não apenas segredos só, mas também tristezas, alegrias, arrependimentos secretos e até intenções (a maioria das quais não cumprimos). O mundo da espionagem conta tudo isto com incrível clareza. Em certo sentido é a expressão máxima do humano, ou nele se manifesta com menos claro-escuros do que em qualquer outro. Há muitíssimos anos também escrevi um artigo no qual apontava as semelhanças entre o espião e o romancista. Já não sei bem o que disse nele, mas acho que a semelhança é inegável. Ainda que seja só porque o romancista também averigua, desvenda a história que escreve à medida que avança. É assim pelo menos no meu caso, o único sobre o qual posso falar com conhecimento.

O romance preocupa-se com a nossa incapacidade de «ler» os outros. «Aqui estudamos as pessoas», diz Tupra ao narrador, «deciframo-las, interpretamo-las». Essa ideia do ser humano como uma criatura misteriosa é importante para ti. Dir-se-ia que o romance é o único lugar onde vemos os outros com clareza.
Também não os vemos com clareza nos romances. Pelo menos não nos bons, nos ambíguos, naqueles que não são edificantes, nem moralistas, nem instrutivos. Na atualidade estamos cheios desses romances, simplistas e, portanto, maus. Aqueles em que o leitor é informado, desde a primeira até à última página, de quem deve condenar, de quem deve ter pena, de quem deve censurar. Romances de vítimas duvidosas e carrascos duvidosos, com sublinhados e exageros, que incluem um manual de instruções para que o leitor se indigne com alguns e simpatize com outros. Nada dessa corrente avassaladora sobreviverá, na minha opinião. Porque a vida é complexa e ambígua, apresenta-nos constantemente dilemas morais, e a maioria deles é, no mínimo, motivo de reflexãoHoje muitas pessoas não pensam, não prestam atenção, não percebem as contradições e inconsistências das posições que tomam. Nunca saem delas, por mais difícil e espinhoso que seja o caso que se lhes apresenta. Mas muitos outros estão envoltos em sombras, com os seus prós e contras. São crepusculares. E é isso que muitos contemporâneos rejeitam categoricamente. Odeiam dúvidas, odeiam rachaduras nos seus monólitos. Mesmo nos romances e nos filmes, que cada vez mais se pretende que levem, como disse, o seu manual de instruções morais inserido nas suas páginas e imagens e, o que é pior, na sua prosa, no seu planeamento, no seu estilo.

Além de algumas cenas em Madrid e uma muito breve em Londres, o romance acontece no noroeste de Espanha, numa cidade fictícia que mistura várias cidades reais: Ruán. Nos teus romances geralmente há cenas de muita comicidade, mas algo mais acontece aqui: as personagens têm nomes exóticos ou ridículos, os cenários têm algo de pastoral ou gravura. Quando leio os teus romances, penso em Henry James; desta vez pensei em Dickens.
Essa cidade, a que Tomás Nevinson chama «Ruán» para evitar confessar onde é que atuou, é em parte imaginada e em parte, como dizes, uma combinação de várias: espanholas, italianas, francesas e até inglesas. Verdade seja dita que a única coisa que há de Soria – com a qual tenho laços antigos – é uma árvore e um parque. Na minha cabeça há uma mais real do que qualquer outra (não vou dizer qual), mas também não é essa. Com apenas algumas pinceladas espero que o leitor fique com uma ideia de Ruán e da sua atmosfera. E de seu caráter. E, sim, nem todas, mas algumas figuras daquele lugar são dickensianas. Os assuntos do romance são sérios o suficiente, acho eu, para exigir alguns momentos de humor. Embora tenha a ideia de que há humor em todos os meus romances, em alguns mais do que outros, mas em todos eles existe. Há melhor professor do que o Dickens, que pela sua vez vem de Sterne, que pela sua vez vem de Cervantes? É um humor de origem espanhola, que foi abandonado pelos mal-humorados espanhóis.

«Estamos cheios de romances simplistas e, portanto, maus. Aqueles em que o leitor é informado, desde a primeira até à última página, de quem deve condenar, ter pena, censurar.»

Conrad disse que o romancista é o historiador da experiência humana. Tomás Nevinson põe as mãos na lama por um momento difícil para a sociedade espanhola; até usa artigos jornalísticos e uma foto real cheia de dor, mas a sua obsessão é contar o que não se vê naquela fotografia, o que esses artigos não contam.
A foto é muito conhecida e já foi reproduzida na imprensa dezenas de vezes, mas é impressionante (sem ser muito macabra). Os mais jovens, no entanto, podem não a conhecer, e certamente os leitores estrangeiros que sei que tenho [não a conhecem]. Como também ignoram o que a ETA fez e supus em Espanha e na Irlanda do Norte, não apenas o IRA, mas também os paramilitares protestantes. A minha infância e a minha juventude foram amarguradas pelo regime do Franco. A minha segunda juventude e a minha maturidade pela ETA, que não matou tanto quanto a ditadura, mas muito e de forma gratuita, nesse aspeto herdeira do franquismo. Na minha cidade, Madrid, só em democracia, a ETA assassinou 101 pessoas, creio. Os sobressaltos e o luto eram contínuos. Tudo se dissemina com o tempo, quando não é apagado intencionalmente. Não para Tupra e Nevinson. «Para nós», diz um deles, «ontem e anteontem são hoje e são amanhã. Nós somos aqueles que nunca esquecemos». Eles lembram-se, mas desapaixonadamente, como parte do seu trabalho. A prescrição dos crimes também é discutida no romance, um outro dilema, além daquilo que as leis estabelecem. Também não é fácil resolver esse dilema. O único artigo de jornal que está amplamente incluído, se não me engano, diz respeito a um homicídio não terrorista. As informações sobre os atentados são conhecidas e estão em todo lado. O mau é que começa a ser esquecido, e não ensinado. O que faria sentido daqui a cem anos. Porém, a ETA foi dissolvida recentemente e os seus representantes políticos, agora branqueados por muitos, nunca condenaram redondamente as suas atividades. Na Irlanda do Norte, por sua vez, o acordo que trouxe a paz – ou uma trégua duradoura ­– foi assinado em 1998. Anteontem, por assim dizer. De qualquer forma, Conrad estava certo. O romancista está interessado nisso, na experiência e na indecisão humanas.

No final do romance, María Viana, uma das mulheres que Nevinson encontra em Ruán, inicia uma reflexão sobre a propensão humana a  deixarmo-nos enganar. Falar da facilidade com que acreditamos nas histórias é falar de ficção, mas também do nosso tempo em que as mentiras políticas mais absurdas penetram facilmente nos cidadãos desinformados ou crédulos.
María Viana reconhece que o seu defeito foi sempre a credulidade, e por isso considera-se uma idiota. Tendeu a acreditar no que lhe foi dito, com um argumento impecável em princípio: «Por que é que eles me mentiriam, enganar-me-iam?» Ela é uma pessoa confiante por natureza, e acho que isso deve ser aplaudido. Não se pode passar a vida a desconfiar de todos. No entanto, sofreu muitas deceções e enganos, como é normal. Infelizmente, não se pode ir assim pela vida. Sempre houve pessoas astutas e falsas. O que é novo no nosso tempo é que existem muitas pessoas assim e que têm ferramentas muito eficazes para espalhar as suas mentiras e enganos. Também é novidade que todos os políticos – com poucas exceções –  estejam dedicados a isso, por princípio e permanentemente. Uma coisa é a esperada falsidade ocasional, outra a falsidade contínua. Uma coisa é que alguns fizeram dela a sua arma política, e outra que quase todos a adotaram. A credulidade é hoje uma verdadeira praga, e não só na política, mas em todos os assuntos importantes (vacinas) ou insignificantes (quais são as obras-primas contemporâneas). Não sei se chegará o dia em que a humanidade sairá do feitiço. Hoje, boa parte dela acredita nos insensatos, nos brutos, nos irracionais, nos insalubres e nos malvados, sem perceber o que são essas coisas. A incapacidade de decifrar os outros, de desenvolver um mínimo de discernimento, está no auge, e muitas pessoas atiram-se, encantadas e presunçosas, para os braços de malfeitores e tolos nocivos. Este tempo tão entontecido vai passar, mas não sei se vamos vê-lo. Espero que sim, pelo menos tu.

©JUAN GABRIEL VÁZQUEZ./ EDICIONES EL PAÍS, SL 2021

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