A contestatária, a regressada, a arguta: Mafalda está de volta às livrarias

A espaços, os livros que lançamos servem para conseguirmos contrarias grandes chavões e lugares comuns. Por exemplo, parece-nos manifestamente exagerado dizermos “não devemos regressar aos lugares onde fomos felizes”. Porque, muitas vezes, devemos fazê-lo, sem medo da comparação com eventuais memórias gratificantes (e cristalizadas). Um desses lugares fica na Argentina. Ou melhor, em todo o lado, em todo o globo, porque Mafalda, a Mafaldinha, a Mafalda de Quino, a nemesis de todas as sopas e caldos, é do mundo todo.

 

Depois de estar indisponível aos leitores durante um longo período de tempo, Mafalda regressa ao nosso convívio a partir de 23 de outubro para nos mostrar que o lugar que muitos de nós conheceram há muitos anos mantém as mesmas qualidades. E que as suas diatribes em torno da família, do bairro, dos amigos ou da política se mantêm acutilantes e inspiradas. Na Penguin, começamos pela publicação d’O Indispensável de Mafalda, permitindo começar a matar as saudades dos indefetíveis e passar o legado “mafaldiano” a potenciais novos leitores. Mas de onde vem, afinal, esta figura inspiradora sempre de dedo em riste (e sim, já sabemos que nasceu no país das pampas)?

 

 

As origens

Tudo começou com uma ideia para uma campanha publicitária, alicerçada em personagens ilustrados. Joaquín Salvador Lavado Tejón, também conhecido como Quino, aliou-se ao amigo cartunista Miguel Brascó para criar uma personagem que ajudasse a publicitar os produtos de uma conhecida marca argentina de pequenos eletrodomésticos.  No entanto, e provavelmente para sorte de milhares de leitores, a campanha gorou-se e a pequena Mafalda de seis anos, acompanhada dos pais, estreou-se como tira cómica na revista Primera Plana em 1964, evocando um ambiente próximo dos Peanuts, de Charles Schulz. Reflexiva na mesma medida, só que com um lado mais interventivo sobre o mundo em que lhe coube viver. Até ao abandono da série por Quino, em 1973, Mafalda e a sua trupe cada vez maior de personagens (à família nuclear juntar-se-iam Filipe, Susaninha, Manelito e outras figuras populares) habitariam várias publicações periódicas, com sucesso crescente. Um dos segredos da série passa pela intemporalidade do humor e da observação do real, característica que terá sido reforçada pela necessidade de entrega antecipada das tiras; era impossível a Quino acompanhar a realidade em cima do momento – uma necessidade comum nos dias de hoje -, tendo acabado por criar figuras e situações através das quais podemos revisitar o passado, mas também estabelecer relações com o presente. E até antecipar o futuro da nossa condição humana, sujeita às mesmas inquietações, uma vez e outra.

 

 

Os temas

A saga, se é que podemos dar-lhe este nome, inicia-se com uma típica família da classe média daquela época, com uma filha a dar para o indomável, um pai empregado de escritório e cansado da banalidade da vida, e uma mãe doméstica, perturbada a espaços pelo presente baço que lhe calhou viver, enterradas as ilusões de juventude. Carregadas de humor existencial e de um questionamento permanente, as tiras de Mafalda assentam em primeiro lugar na vida interior das suas personagens, engolidas pelas maleitas da vida de todos os dias. Sejam essas maleitas o trabalho alienante ou um simples prato de sopa. Mas para além disso, à medida que novas personagens iam sendo introduzidas, o espectro de preocupações de Mafalda foi-se expandindo, abrangendo a geopolítica – “a sopa é para a infância o que o comunismo é para a democracia”, o neoliberalismo avant la lettre nas palavras e preocupações corporativas do pequeno merceeiro Manelito, a hipocrisia caridosa de uma Susaninha que só sonha com um bom casamento, nutrindo um desprezo evidente pelos pobres, ou o espectro dos sonhos esmagados pelo quotidiano, que assombram o sonhador, mas sombrio, Filipe. Um autêntico Lone Ranger por concretizar.

 

 

Pelo meio, vincam-se as idiossincrasias da condição feminina – “Mamã, o que quererias ser se vivesses”? -, e reflete-se sobre o autoritarismo, a sobrepopulação, a ameaça nuclear ou os problemas do capitalismo global. Mesmo em temas como a Guerra Fria, que poderiam ter um prazo de validade e soar anacrónicos, há uma abordagem sempre pertinente e acutilante. Sobretudo, tendo em conta que a queda do muro de Berlim não trouxe o anunciado Fim da História”.  Tudo isto, recorrendo à hilaridade, ao pensamento crítico e à busca por uma espécie de empatia universal que nos aproxime. Tendo em conta o estado do Mundo, distinto mas ao mesmo tempo parecido com o da época em que Mafalda foi criada, vamos bem a tempo de procurar uma companheira naquela menina de cabelos negros e encrespados, com uma alma do tamanho do globo. Desde que não a convidemos para partilhar um caldo verde ou uma juliana.

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