As veias literárias da América Latina

Fomos buscar a inspiração a um conhecido título de Eduardo Galeano para falar sobre um momento especialmente vibrante na criação literária daquele continente. Por estes dias, lemos uma geração de gente talentosa, proveniente de diversos países, mas com língua e parte do imaginário comuns. Da luta de classes retratada por Alia Trabucco Zerán (Chile), ao vendaval literário, humano e feminino de Fernanda Melchor (México), passando pela Literatura enquanto personagem de Alejandro Zambra, pela favela-ponto-de-encontro-do-mundo de Geovani Martins (Brasil), pelo universo único e inquietante de Samanta Schweblin (Argentina), pela persistência da memória de Juan Gabriel-Vásquez (Colômbia) e acabando nas amarguras ditatoriais de Nona Fernández (Chile), há todo um mundo em língua espanhola – e portuguesa – de que pudemos começar a desfrutar recentemente. Nomes aos quais se junta a chilena Lina Meruane, a “decana” deste grupo informal, nascida em 1970 e autora de Sistema Nervoso, um livro devastador sobre a consciência da morte e a vida em família.

 

Uma vaga… de indivíduos

Seria pelo menos forçado agrupar num movimento literário um conjunta de vozes tão distintas e carregadas com estilos muito próprios. No entanto, é impossível abstrairmo-nos de uma geografia que tem transbordado de talento, numa segunda vaga de criadores que, de forma mais ou menos consciente, se afastaram dos chavões do realismo mágico. No caso de Geovani Martins, a bagagem literária é distinta, mas a abordagem do autor é também muito própria: diretamente das ruas e das vidas esgravatadas para as andanças da Literatura internacional. É esse universo que encontramos no recente Via Ápia, edição Companhia das Letras. No caso dos escritores em língua espanhola, é habitual falar-se do chamado Efeito Bolaño, admitindo o peso que o autor chileno de culto ganhou neste contexto, abrindo de alguma forma a porta a novos autores e ao mesmo risco: escrever sobre violência, assombro, marginalidade, inquietação, memórias pesadas de ditaduras com mão de ferro. E transcender pesadelos bem reais destas sociedades através da escrita. Matéria-prima que poderia ter o efeito contrário ao desejado, afastando leitores. No entanto, a vitalidade da prosa, a sua originalidade, a empatia que criam com quem os lê, mesmo que a milhares de quilómetros de distância, tem justificado as apostas.

 

Traumas e tabus

Sem contemplações, este conjunto de escritores que achámos por bem irmanar neste espaço, tratam de temas sensíveis – de traumas e tabus das suas sociedades; alguns, pondo o passado em perspetiva; outros, trazendo esse passado para o presente, forma de demonstrar que há barreiras por ultrapassar e feridas por sarar. Muitas vezes, os processos políticos são esvaziados, passando ao lado dos factos e das memórias, e só a Arte, a Escrita, o Pensar permitem tratar temas que formam identidades, mesmo que de forma dolorosa. Muitas vezes recorrendo à Literatura dentro da Literatura e à saudável inquietação que esta traz. No fundo, não estamos certos de que a Literatura salve, mas na América Latina é certo que o tentam com afinco.

 

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