Felizes Anos de Castigo: eis Fleur Jaeggy

Felizes Anos de Castigo é a obra-prima de uma escritora de culto, tão enigmática quanto fascinante, acabada de chegar a Portugal. Este romance é um salvo-conduto para o mundo de duas mulheres unidas por uma amizade peculiar, e para a prosa feroz e singular de Fleur Jaeggy, autora suíça com um percurso literário construído em Itália. Este romance fulgurante, publicado originalmente em 1989, traz consigo uma intemporalidade que só a Literatura consegue preservar. E uma experiência autobiográfica única, que agora podemos ler em português, graças à recentíssima edição Alfaguara (tradução de Ana Cláudia Santos).

 

 

A Autora

Fleur Jaeggy nasceu em 1940, em Zurique. Passou a infância e adolescência em colégios internos na Suíça, experiência que Felizes Anos de Castigo relata de forma íntima. Trabalhou brevemente como modelo fotográfico, antes de se mudar para Roma, nos anos 1960, onde passou a frequentar o círculo literário da época e se tornou amiga de escritores como Ingeborg Bachmann, Thomas Bernhard, Italo Calvino ou Joseph Brodsky. Em 1968, foi viver para Milão e começou a colaborar com a Adelphi, icónica casa editorial italiana. Nesse mesmo ano, casou-se, em Londres, com o escritor e editor Roberto Calasso, fundador da Adelphi. Traduziu Marcel Schwob, Thomas de Quincey e Robert Schumann; escreveu sobre John Keats e Robert Walser. Entre 1968 e 2014, publicou oito livros — uma obra breve, mas unanimemente reconhecida como intensa, peculiar, inesquecível. Susan Sontag considerou Jaeggy “uma escritora magnífica, brilhante, selvagem”, tendo permanecido praticamente desconhecida em Portugal até hoje. Não ajuda a forma discreta como habita o mundo literário, cada vez mais performativo  no que aos autores diz respeito. Jaeggy vive praticamente em reclusão e concede pouquíssimas entrevistas, rejeitando implicitamente o star system instituído pelo universo editorial internacional. Numa entrevista recente à revista The New Yorker, abriu uma exceção, mas respondeu quase sempre de forma telegráfica, afirmando não pensar nada sobre si própria – é assim que se sente confortável –, atribuindo a autoria e os méritos do seu trabalho à máquina de escrever Hermes que mantém no seu apartamento em Milão. Hoje em dia escreve pouco ou nada, e mantém as histórias dentro da sua cabeça, aparentando ter dado por encerrado o seu percurso na Literatura. Mas aquilo que já publicou continua a ser relevante, estando ainda em grande parte por revelar aos leitores portugueses.

 

 

O livro

Felizes anos de castigo, o seu romance de estreia, saiu então em Itália em 1989, recebendo os prémios Bagutta, Speciale Rapallo, Boccaccio Europa e John Florio. Até agora inéditos em Portugal, os seus romances estão editados em mais de vinte línguas, e Fleur Jaeggy alcançou o prestígio literário dos escritores de culto em todos os países onde está publicada. É desta forma que Joseph Brodsky, poeta russo galardoado com o Prémio Nobel de Literatura em 1987, fala sobre a estreia da autora suíça:  “A caneta de Fleur Jaeggy é como a agulha de um entalhador a desenhar as raízes, os galhos e os braços da árvore da loucura — uma prosa extraordinária. Tempo de leitura: quatro horas. Tempo de recordação: a vida inteira.”. Nesta narrativa profundamente pessoal, ficamos a conhecer a história de uma rapariga à procura de si mesma, num colégio interno suíço, nos anos 1950. Respira-se ali uma atmosfera densa de cativeiro, sensualidade inconfessada e alienação. A protagonista é uma rapariga incomum, que se deixa fascinar por uma outra, bela, sofisticada e inteligente. Entre elas nasce uma relação ambígua, de luz e sombra. Num estilo límpido mas vibrante, Fleur Jaeggy faz reverberar nesta narrativa a corda secreta de um mundo apartado da realidade, onde se vê, numa voragem, «a vida passar pelas janelas».

Felizes anos de castigo pertence a uma linha do tempo mais indefinida do que a época ou as pessoas que retrata: desenrola-se na memória, essa espécie de século à parte dos outros. Na opinião do crítico Pedro Mexia, nesta obra, «intensidade emocional e linguística equivalem-se, sustentam-se», alternando melancolia, desaforo, enigma. Numa atmosfera sombria e alheada do mundo exterior ao qual gostaria de pertencer, a protagonista lê Baudelaire e Novalis e entra num caminho de sedução de Frédérique, admirando-lhe a contenção e sentindo-se consumida pela sua energia espiritual. Na escrita, austera, espelhando aquela atmosfera de internato, cabem todos os sentimentos do Universo. Bem-vindos a mais um capítulo de grande Literatura.

 

 

 

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