Sofi Oksanen, uma mulher entre dois mundos

Daria e Olenka. Dnipropetrovsk e Helsínquia. Duas mulheres que partilham uma história de lealdade, amor e confiança traída. Dois países (Finlândia e Ucrânia) em duas linhas do tempo que cosem a narrativa. Dois vícios endémicos, complementares – a corrupção a leste e a ganância a oeste – que proporcionam um negócio aviltante, a partir do corpo feminino. Misto de thriller psicológico e mergulho profundo na condição da mulher, O Parque dos Cães marca o regresso da premiada Sofi Oksanen à ficção com uma história de exploração. Maternal, criminosa, aviltante. É o corpo da mulher que gera vida. É o corpo do homem que manda no tráfico. É o corpo da mulher que gera lucro.

 

 Uma escritora entre dois mundos

 

 Sofi Oksanen viveu entre a Finlândia e a Estónia, territórios a partir dos quais conquistou o mundo literário. Traduzida em mais de quarenta línguas, ganhou relevo com as suas ficções – seis, ao todo – e chegou aos leitores portugueses através de Purga, fábula pós-independência dos países bálticos na qual importam o passado, as relações humanas e suas contradições e as histórias vincadas de duas mulheres. Um ponto de vista que Sofi assume e trata literariamente de forma empenhada e sem contemplações nem sentimentalismos. Dura, áspera, sem nunca descartar a sensibilidade, é uma feminista assumida a escrever para toda a gente. Para as mulheres e para os homens, para os aviltados pelo totalitarismo e para quem vive nos escombros de possibilidades traídas.

Nascida em 1977, Sofi Oksanen assistiu à queda da União Soviética ao entrar na adolescência. Filha de pai finlandês e de mãe estónia, Sofi escreve em finlandês, mas não descarta a dupla nacionalidade. Antes pelo contrário. Esta viagem mental entre dois mundos ocupa boa parte das suas preocupações literárias e políticas; pode dizer-se, aliás, que é uma escritora política, no sentido original da palavra: a preocupação com a comunidade e com a pólis é faceta assumida pela autora d’O Parque dos Cães. Este último livro não é exceção. Habituada a escrever para teatro – A Purga começou por ser levada ao palco antes de se tornar romance – Oksanen sabe dispor das personagens, insuflá-las de vida e pô-las a olhar de frente para o seu público. Para os seus leitores. Uma vez convidados a entrar na sua escrita envolvente e sem contemplações, é difícil desviar o rosto, mesmo do contexto mais infame.

 

A Indústria da Fertilidade

 

 Apesar de caber em parte na definição de thriller, O Parque dos Cães não vive à sombra de um mistério particular ou de algo obscuro por deslindar. A história escondida de Olenka é revelada desde cedo e não há exatamente uma busca por culpados nem por mordomos comprometidos. O que mais preocupa Sofi Oksanen é perceber os mecanismos sociais, políticos e económicos que levam a que a mulher seja desumanizada sem piedade e que seja encarada como uma mercadoria, uma fornecedora de matérias-primas. Neste caso concreto, uma fornecedora de vida para ser desfrutada por terceiros.

A autora põe Olenka num lugar desconfortável e de reflexão: olha para as suas escolhas, se é que assim podemos chamar-lhes, e mostra a forma como foi empurrada para a chamada Indústria da Fertilidade, expressão que carrega toda uma carga de perversão. Duas palavras que não deveriam andar juntas. Dois conceitos que deveriam colidir. À boleia da escrita de Sofi Oksanen, nunca vemos apenas num mundo. Se a construção narrativa da autora já foi comparada a um cubo de Rubik, a forma como nos põe ante a vida dos outros faz lembrar um caleidoscópio.

Bem-vinda de volta à “ficção”, Sofi.

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